terça-feira, 19 de abril de 2022

Reinheitsgebot: a lei de pureza da cerveja alemã de 1516 de um ponto de vista da ética e da moral

Em colaboração com a advogada e professora Géssica Guimarães Santos.

Selo emitido em 1983 celebrando a história do Reinheitsgebot, e também comemorando seu 450º aniversário

A Reinheitsgebot [1], que completará 506 anos no próximo dia 23, constitui um dos mais antigos decretos alimentares da Europa, mas ao contrário do que se costuma propagar, ela não é um atestado de qualidade absoluto. Embora seja possível produzir centenas de tipos diferentes de cerveja apenas utilizando os 4 ingredientes básicos, os adjuntos e as especiarias conferem um caráter especial para a bebida.

No Brasil é muito comum considerar que a cerveja é de baixa qualidade por usar adjuntos, mas acabamos por negligenciar o fato de que estilos riquíssimos como as Cream Ale, as Oatmeal Stouts e muitos estilos da escola belga levam adjuntos como milho, aveia e trigo não malteados em suas receitas, conferindo características únicas de sabor e textura. 

É fato que a cerveja é a bebida mais democrática da história da humanidade. Ela é, em muitos meios, a cola social que aproxima e reúne as pessoas, seja em torno de uma mesa de bar, em casa, em um biergarten, em eventos esportivos ou acompanhando um show... e se hoje sabemos que ela fica tão especial com variações de aromas, gostos e texturas, porque reduzir a sua produção apenas aos ingredientes básicos? Quais eram as reais motivações do governo bávaro para decretar a lei?

Uma das hipóteses, a mais postulada e difundida por diversos estudiosos do tema, é de que a lei foi necessária para proteger a saúde das pessoas. Em seu texto para o blog Famiglia Valduga, Rodrigo Veronese afirma que "[...] a determinação [...] surgiu porque, na época em que foi estabelecida, os cervejeiros da região da Baviera tentavam inovar suas produções adicionando à bebida ingredientes inusitados e muitas vezes tóxicos, como fuligem de cal, beladona, rosmaninho silvestre e papoula." Essa hipótese é parcialmente corroborada pela escritora Juliana Simon em seu blog Siga o Copo: "Na Alemanha, por exemplo, se usava absinto, babosa e outros mil recursos para aumentar a sensação alcoólica e o corpo da bebida. As adulterações das fórmulas eram frequentes. Tudo isso gerava uma preocupação para os governos e consumidores, claro". Na visão de Günther Thömmes, mestre cervejeiro e escritor alemão, é um exagero considerar que a lei foi pensada com o intuito de proteger a saúde das pessoas: "a principal motivação por trás da lei de pureza era manter concorrentes indesejados afastados e maximizar os lucros. Os governantes do final da Idade Média não estavam preocupados com a proteção do consumidor ou a conscientização da saúde". Esse contraponto também é partilhado pela Juliana Simon: "Ainda que muitos confundam a lei com corações inocentes pelo bem da cerveja, pureza não era o principal interesse das novas regras. Aliás, ao que consta, somente 9,85% do documento original da lei trata de ingredientes de "renheit" (pureza em alemão)."

A lei permaneceu restrita à região da Baviera até 1906, quando se estendeu a toda a Alemanha. Após a Segunda Guerra Mundial, o decreto foi atualizado e incorporado à regulamentação federal pra taxação da cerveja (Texto Wikipedia):
  • nas cervejas de baixa fermentação, conhecidas como lager, foram autorizados o malte de cevada, o lúpulo e a água;
  • nas cervejas de alta fermentação, conhecidas como ale, foram autorizados, além disso, os maltes de outros cereais bem como um número limitado de açúcares e corantes.
No entanto, maior liberdade foi deixada às cervejas destinadas à exportação. Hoje, devido à regulamentação europeia, outros ingredientes são autorizados nas cervejas alemãs, mas a maioria dos cervejeiros alemães continua a seguir as prescrições da Reinheitsgebot, consideradas garantia de qualidade. Isto acontece principalmente nas marcas vendidas em território alemão.

E se a lei fosse instituída nos dias atuais, quais seriam as implicações éticas e morais da decisão? Que tipo de manchetes circulariam nas mídias ao redor do mundo? 
Antes de tudo, é importante pensarmos em quais são as motivações para elaboração e promulgação de uma lei. Uma lei, qualquer que seja, deveria atentar para a necessidade social e estudo a partir de implementação de políticas públicas. Mas o que acabamos observando são leis promulgadas com base no clamor social, interesses políticos ou de grupos dominantes. Claro que isso não existe apenas no Brasil, como percebemos no nosso exemplo. Quais seriam os interesses ocultos (ou não ocultos) atrás da promulgação da Lei Alemã de Pureza da Cerveja? Será que parte da mídia sairia anunciando como o fim da anarquia na produção cervejeira? Isso levanta muitas outras questões: como consumimos informações, sejam elas sobre leis ou sobre cervejas.

O fato é que, embora não pareça ter sido o intuito, a lei de pureza da cerveja ajudou a escola alemã a atingir um nível de maturidade na produção difícil de alcançar. A restrição trouxe, sim, segurança no planejamento das receitas e não tolheu a criatividade dos cervejeiros. Ao contrário, na minha modesta opinião, o fato de terem que trabalhar com tão poucos ingredientes a disposição os forçou a pensar no que poderia ser feito de diferente para diversificar os produtos. Hoje, estima-se que existam cerca de 5000 tipos de cerveja, distribuídos em centenas de marcas na Alemanha. Isso é prova de que a combinação dos 4 ingredientes com a competência no planejamento de uma receita, torna possível entregar um produto de qualidade e que vá surpreender o consumidor, muitas vezes ávido por novidades.

E você? O que acha da lei de pureza da cerveja alemã? Acha que ela traz benefícios? Qual seria a sua reação caso esse tipo de lei fosse implementada no nosso país hoje? 

A Reinheitsgebot original

[1] Lei Alemã de Pureza da Cerveja, 1516: "Proclamamos e decretamos, por Autoridade de nossa Província, que doravante no Ducado da Baviera, no país, bem como nas cidades e mercados, as seguintes regras se aplicam à venda de cerveja: De Michaelmas a Georgi, o preço para uma missa [litro bávaro 1.069] ou um Kopf [recipiente em forma de tigela para fluidos, não exatamente uma missa], não deve exceder um valor de Pfennig Munique, e de Georgi a Michaelmas, a missa não deve ser vendida por mais de dois Pfennig de o mesmo valor, o Kopf não mais do que três Heller [Heller geralmente metade Pfennig].

Se isso não for cumprido, a punição indicada abaixo deve ser administrada. Caso qualquer pessoa produza ou tenha outra cerveja além da cerveja March, não deve ser vendida acima de um Pfennig por Missa. Além disso, desejamos enfatizar que no futuro em todas as cidades, mercados e no país, a única ingredientes usados ​​para a fabricação de cerveja devem ser cevada, lúpulo e água. Quem conscientemente desrespeitar ou transgredir esta portaria, será punido pelas autoridades do Tribunal confiscando tais barris de cerveja, sem falta. Se, no entanto, um estalajadeiro do campo, cidade ou mercado comprar dois ou três baldes de cerveja (contendo 60 missas) e vendê-los novamente ao campesinato comum, só ele poderá cobrar um Heller a mais pela missa do Kopf , do que o mencionado acima. Além disso, caso surja uma escassez e consequente aumento do preço da cevada (considerando também que as épocas de colheita diferem, devido à localização), nós, o Ducado da Baviera, teremos o direito de ordenar cortes para o bem de todos os interessados.

Assinado: Duque Guilherme IV da Baviera em 23 de abril de 1516 em Ingolstadt. "

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Referências bibliográficas
  1. Texto Juliana Simon
  2. Reportagem Alumniportal Deutschland.
  3. Reportagem BBC.
  4. Texto Martyn Cornell.
  5. Texto Sergio Barra.
  6. Texto Wikipedia
  7. Entrevista Daniel Wolff.
  8. Texto Rodrigo Veronese.
  9. Texto Rodrigo Veronese / Famiglia Valduga)
  10. Vídeo Brauer.
  11. Vídeo History Pod.

sábado, 2 de abril de 2022

Dunkelweizen: a cerveja branca escura

Em seu livro German Wheat Beer, Eric Warner define a Dunkles Weissbier, de forma literal como cerveja branca escura. Para compreender o contraditório termo, é preciso contexto:

  • A palavra alemã Weizen, se usada na forma literal, quer dizer trigo. Coloquialmente, significa cerveja de trigo ou Weissbier;
  • Weiss significa branco e Bier, cerveja. Apesar de ser amarelo-dourada e não branca, é uma cerveja muito mais clara que as populares em épocas anteriores na Baviera, daí o termo;
  • A palavra Dunkel significa escuro e pode se referir ao estilo, mas também a uma cerveja escura qualquer.
Weihenstephaner Hefeweissbier Dunkel

É um estilo clássico da escola alemã e pode ser encontrado com facilidade na região da Baviera. Feita com maltes escuros de cevada ou trigo, se assemelham muito em sabor às Hefe Weissbier (Hefe é um termo em alemão que quer dizer levedura e designa as cervejas engarrafadas com levedura em suspensão), diferentes no aroma, mais rico e maltado que as Weissbier mais claras.

O guia BJCP define a dunkelweizen como: cerveja de trigo alemã moderadamente escura com um perfil distinto de banana e cravo provenientes do processo de fermentação da levedura weizen, apoiado por um sabor de pão torrado ou malte caramelo. Altamente carbonatada e refrescante, com uma textura cremosa e fofa e final leve. A centenária e tradicional cerveja de trigo alemã deteve seu direito de fabricação reservado para a realeza da Baviera até o final dos anos 1700. A cerveja bávara costumava ser escura, assim como a maioria das cervejas da época. As Weissbier mais claras começaram a se tornar populares na década de 1960. É um estilo que combina o caráter de levedura e trigo das Weissbier com a riqueza maltada de uma Munich Dunkel. O caráter de banana e cravo geralmente é menos aparente do que em uma Weissbier clara devido ao uso dos maltes escuros, que conferem aroma e sabor marcantes. São cervejas com corpo médio-baixo a médio-alto, amargor baixo e teor alcoólico variando na faixa entre 4,3 a 5,6%. O guia da Brewers Association discorda em alguns pontos do guia BJCP, sendo o mais notável a percepção de aroma e sabor de lúpulo: enquanto o BJCP prega a flexibilidade destas características, o guia da BA afirma que não devem estar presentes. Além disso, variações mínimas nas características vitais como OG, FG, IBU e ABV.

Perfeita para acompanhar bolinho de bacalhau, ovos com bacon, carnes vermelhas marcantes como pato assado e vitela e peixes como salmão defumado e truta.

ESCOLHA DO EDITOR: os melhores exemplares do estilo

Alguns exemplos comerciais sugeridos pelo BJCP são: Ayinger Urweisse, Ettaler Benediktiner Weißbier Dunkel, Franziskaner Hefe-Weisse Dunkel, Hirsch Dunkel Weisse, Tucher Dunkles Hefe Weizen, Weihenstephaner Hefeweißbier Dunkel.

Você já provou alguma delas? Quais são as suas impressões sobre este estilo?

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Referências Bibliográficas
  • E. Warner, German Wheat Beer, Brewers Publications, Inc., Boulder, 1992.
  • C. Swersey, P. Gatza, C. Skypeck, K. Kirkpatrick, C. Williams and D. Rabin, Brewers Association 2012 Beer Style Guidelines, 2022.
  • G. Strong and K. England, Beer Judge Certification Program 2021 Style Guidelines, 2021.

quinta-feira, 31 de março de 2022

Copos adequados para a degustação de cerveja: mito ou verdade?

Existe justificativa técnica para indicar um tipo específico de copo para cada estilo de cerveja ou isso é mito?

Copo Nonic Pint, usado em geral para servir cervejas britânicas

É claro que cada cerveja manterá suas características próprias independente do recipiente onde estiver servida - contando com uma situação onde este recipiente esteja livre de contaminantes e frio, no máximo à temperatura ambiente -, mas o material do copo e seu design de fato influenciam a forma como percebemos a experiência da bebida.

Material

Vidro, plásticos e metais se diferenciam por diversas características físicas e algumas delas afetam diretamente a qualidade sensorial da bebida. A condutividade térmica é uma delas, sendo os metais excelentes condutores e os plásticos isolantes. Posto isto, beber uma cerveja em um copo de metal que ficará muito tempo em sua mão pode não ser uma boa ideia.
A outra é a condição superficial de cada um destes materiais: plásticos como o polipropileno, por exemplo, comumente utilizado na fabricação de copos reutilizáveis, possuem alta energia superficial em comparação a outros plásticos, o que aumenta sua interação com a bebida causando certo retardo no escoamento. No caso dos metais, a interação é física: embora pareçam superfícies altamente polidas e lisas, microscopicamente são superfícies irregulares e que promovem atrito, causando da mesma forma alta interação entre a bebida e o material do recipiente, também retardando seu escoamento. O vidro, no entanto, é um material relativamente isolante térmico e que possui uma superfície relativamente lisa e inerte do ponto de vista de energia superficial, fatores que o tornam o material mais indicado para aproveitar ao máximo a experiência sensorial de sua cerveja.

Infográfico que apresenta os cariados copos disponíveis para degustação de cervejas

Design

Outro fator, este muito mais explorado pelo sommelier de cerveja, é o design dos copos. É possível encontrar na internet diversos infográficos interessantes, que sugerem o tipo de copo adequado para cada estilo de cerveja. Você encontrará algumas sugestões deles nos stories.
Alguns fatores do design que influenciam a experiência do apreciador de cerveja são listados e explicados a seguir.
Parede: quanto mais reta e mais inclinada a parede do copo, maior o escoamento do líquido, preenchendo a boca de quem está bebendo de forma mais rápida e vice-versa. Por este motivo copos do tipo Pilsner (copos altos e de paredes retas) são indicados para cervejas de menor complexidade como as lager e os copos do tipo Tulipa (taças mais baixas e bojudas) para cervejas belgas mais complexas e alcoólicas.
Bocal: o desenho da boca do copo é outro fator importante. Quanto maior for a complexidade no aroma da cerveja, mais fechada deverá ser a boca do copo. Neste caso, novamente o copo Pilsner, que possui o fundo mais estreito e a boca mais larga, é indicado para cervejas de menor complexidade de aromas, enquanto os copos Snifter, Taster e IPA são os mais indicados para cervejas complexas e que demandem retenção do aroma por mais tempo. Alguns copos podem ainda trazer alterações nas bordas na tentativa de direcionar o líquido para a língua do consumidor, aumentando a percepção de sabor.
Manuseio: o local de empunhadura do copo é importante para o controle da temperatura durante o consumo. Cervejas que necessitam permanecer geladas por mais tempo devem ser consumidas em taças com a empunhadura fora da parede do copo ou alças. Cervejas que demandem o consumo em temperaturas mais elevadas podem apresentar a empunhadura na parede sem grandes prejuízos para a qualidade sensorial. 

Conta pra gente: vocês sabiam que o copo era um fator tão importante pra ter a melhor experiência? Ainda tem dúvida sobre o melhor tipo de copo para cada estilo de cerveja? 
Entra em contato. Será um prazer te ajudar!

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sábado, 26 de março de 2022

Stout: a porter que ganhou um novo nome para mostrar a sua força!

Introdução

Em seu livro Instructions for Brewing Porter & Stout, de 1853, Charles Clarkson nos ensina a produzir cervejas destes estilos sem o uso de equipamentos específicos (segundo o autor, pesados e caros), como por exemplo refrigeradores, cubas de fermentação etc. Ele afirma que, aquele que seguir as suas instruções, produzirá algo semelhante à melhor London Porter em sabor e força.

Imagem adaptada do livro Instructions for Brewing Porter & Stout (1853) de Charles Clarkson

Atualmente temos informações suficientes a disposição para saber da importância de se utilizar os equipamentos corretos para produção, fermentação, maturação e envase na qualidade e fidedignidade da cerveja com o estilo buscado. Produzir cerveja é uma arte e deve seguir no contrafluxo da natureza: água, eletricidade e preguiçosos buscam os caminhos mais fáceis; um mestre cervejeiro deve buscar aquilo que precisa com paciência, cuidado e destreza. A tecnologia nos premia com equipamentos cada vez mais precisos e robustos, mas manter a tradição também é importante. Cervejas como as stouts e as porters, originárias da escola britânica, são historicamente armazenadas e servidas em barris de madeira, o que interfere em seu sabor (gosto, aroma e sensações). Existe um movimento no Reino Unido desde a década de 70, o Campaign for Real Ale (CAMRA), que defende a manutenção desta tradição por julgar que "as cervejas armazenadas em barris de aço inoxidável - kegs - são estéreis e sem graça." Palavras de um especialista no assunto, o sr. Martyn Cornell.

Mas o que quer dizer a afirmação de Charles Clarkson? O que seria uma cerveja considerada a melhor stout?

Para tentar, se não responder, pelo menos esclarecer, buscamos auxílio na literatura.

Características

Para começar, não há como afirmar se uma cerveja é melhor ou pior com base no estilo porque isso está diretamente ligado ao gosto e às preferências pessoais de cada indivíduo. Seria uma discussão infrutífera e infinita. O que podemos controlar, no entanto, é a analise da cerveja com base nos estilos aceitos e publicados nos guias do BJCP e do Brewers Association, com algum apoio em literatura especializada no tema, como livros e artigos científicos. Associado a isso, uma análise sensorial técnica nos guiará através da qualidade da cerveja em aroma, aparência, sabor e sensação na boca dos diversos sub-estilos. Pronto, a subjetividade não foi eliminada, mas drasticamente reduzida. O guia do BJCP apresenta 8 sub-estilos da família stout: Irish Stout (15B), Irish Extra Stout (15C), Sweet Stout (16A), Oatmeal Stout (16B), Tropical Stout (16C), Foreign Extra Stout (16D), American Stout (20B) e Imperial Stout (20C). O guia do Brewers Association apresenta outros 7: Sweet Stout ou Cream Stout, Oatmeal Stout, British-Style Imperial Stout, Classic Irish-Style Dry Stout, Export-Style Stout, American-Style Stout e American-Style Imperial Stout. Talvez a mais conhecida do estilo é a mundialmente famosa Guinness, uma Classic Irish-Style Dry Stout. É, inclusive, a cerveja stout mais consumida do mundo. Mas qual conjunto de características faz da cerveja uma stout e não uma porter?

A primeira cerveja britânica escura que se tem referência é a porter, com aproximadamente 300 anos de história. Nesse período as cervejas eram quase todas escuras por conta da dificuldade de se controlar o processo de secagem e torra dos maltes, que até então utilizava carvão e ambiente estático (o coque de petróleo e a invenção do tambor torrador por Daniel Wheeler só viriam a se tornar alternativas viáveis por volta do início do século XIX). Segundo Michael J. Lewis, em seu livro intitulado Stout de 1995, "(...) o primeiro uso da palavra stout claramente referindo-se a uma cerveja aparece em uma carta de 1677 no Manuscrito Egerton, que diz: "We will drink to your health both in stout and best wine (algo como: bebemos em sua saúde, tanto na stout como no melhor vinho). Em 1734, o The London and Country Brewer, um texto anônimo, apareceu pela primeira vez (...). Nesta publicação, a stout butt beer  (algo como cerveja de rabo/bunda forte) é mencionada como uma característica das cervejas londrinas da época. Redman ressalta que entire butt beer (algo como cerveja de rabo/bunda inteira) era a descrição que os cervejeiros faziam da porter à época. Ele assume, no entanto, que a stout butt beer é meramente mais forte ou uma export porter e não é uma verdadeira stout. Em seu comentário sobre essas passagens, Corran insiste que, naquela época, a stout não era nada como as cervejas pretas de hoje que chamamos de stouts. (...)". As palavras de Lewis corroboram o que sugeriu Martyn Cornell em uma de suas palestras no Brasil em 2022, de que a origem da palavra stout remete à força superior de alguns tipos da antiga porter e não propriamente às características atuais da stout que acostumamos a consumir. 

A porter original era uma cerveja de corpo alto e sabor torrado, mais parecida com as stouts atuais. Com o passar do tempo as receitas foram sofrendo importantes modificações para aproveitar o melhor rendimento dos maltes claros, o que modificou também o perfil deste estilo, que passou a ter sabor mais suave, com notas de chocolate e de tosta, não mais torra. No século XIX a stout retorna e se consolida como um estilo à parte com notas mais intensas de tosta e torra do malte e o amargor da porter original.

Alguns dos exemplares internacionais típicos de stout atualmente são: Samuel Adams Cream Stout (Sweet Stout), Young's Oatmeal Stout (Oatmeal Stout), Guinnes Draught Stout e Belhaven Black Scottish Stout (Classic Irish-Style Dry Stout), Guinnes Foreign Extra Stout (Export-Style Stout) e Courage Russian Imperial Stout (British Style [Russian] Imperial Stout).

Belhaven Black Scottish Stout

Alguns exemplares nacionais fáceis de encontrar e que valem a pena conferir são:
Outros que não são tão fáceis de encontrar, ou que estão fora de catálogo, mas que também são cervejas nacionais interessantíssimas são:
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Referências Bibliográficas
  • M. J. Lewis, Stout, Brewers Publications, Inc., Boulder, 1995.
  • C. Clarkson, Instructions for Brewing Porter & Stout, No. 9, Avery Row, Grosvenor Street, London, 1853.
  • C. Swersey, P. Gatza, C. Skypeck, K. Kirkpatrick, C. Williams and D. Rabin, Brewers Association 2012 Beer Style Guidelines, 2022.
  • G. Strong and K. England, Beer Judge Certification Program 2021 Style Guidelines, 2021.

sábado, 19 de março de 2022

Doppelbock: a cerveja do bode


Cidade de Eibeck, Alemanha (fonte: Mapcarta)


História

Bock é um estilo originário da cidade de Einbeck, centronorte da Alemanha. É uma cerveja produzida há séculos e ainda muito popular em diversos lugares do mundo. O termo bock surgiu a partir da evolução e de adaptações da palavra original para o estilo: einbeckisches, que com o passar do tempo passou a ser chamada de einpockisches, de einbock até evoluir para o atual bockbier.

Uma curiosidade sobre as bocks alemãs é que a grande maioria delas estampa a figura de um bode em seus rótulos, conforme ilustrado na Figura 1. Uma das explicações para a presença ilustre do querido animal é mitológica e nada tem a ver com ligação das cervejarias produtoras com as artes das trevas ou com o cão-miúdo: como a cerveja era produzida somente durante o signo de capricórnio (ou seja, no inverno), a figura do bode foi escolhida como garota propaganda do estilo.



Figura 1. Exemplos de rótulos de cervejas do estilo bock. 

O guia do BJCP, muito comum entre cervejeiros caseiros, explica (em tradução livre): "Uma especialidade bávara fabricada pela primeira vez em Munique pelos monges de São Francisco de Paula. As versões históricas eram menos atenuadas do que as interpretações modernas, com consequentemente maior dulçor e teor alcoólico mais baixo (e, portanto, era considerado “pão líquido” pelos monges). O termo "doppelbock” foi cunhado pelos consumidores de Munique."

O livro Bock de Darryl Richman (1994) publicado pela Brewers Publications, por sua vez, traz um breve capítulo contando a história do estilo, adaptado e traduzido livremente para este artigo: "Embora tecnicamente não haja limite superior na "força" (refere-se à OG e principalmente ao teor alcoólico da cerveja) de uma doppelbock, algumas variedades extra fortes possuem densidades originais (OG) bem acima de 1.080 (20°P). A grande maioria delas, no entanto, são produzidas e comercializadas na faixa de densidade entre 1.074-1.080 (18-20 °Plato). As doppelbocks são tão quanto ou mais escuras que as dunkles bocks, e exatamente pelas mesmas razões: o mash, a água carbonatada com que é produzida, seu processo de decocção tripla e longos tempos de fervura contribuem para a cor marrom escura com reflexos vermelhos profundos. O aumento da OG enfatiza a cor e destaca as características do malte. Os níveis de amargor do lúpulo são iguais ou menores que os de uma dunkles bock. O alto teor de melanoidina compensa, até certo ponto, o amargor percebido que falta do pouco uso de lúpulo (...). A maioria das doppelbocks têm baixa taxa de carbonatação."

Características

O termo doppelbock refere-se ao sabor do malte, que é mais acentuado no estilo que o de uma bock convencional. Em termos gerais, trata-se de uma cerveja de coloração de pode variar do acobreado ao marrom escuro, com caráter dominante de malte, remetendo a um perfil levemente tostado, ainda que seja permitido para o estilo um leve perfil de toffee ou caramelo. Seu corpo é alto, assim como a sensação de teor alcoólico (por este motico é uma cerveja indicada para ser consumida em dias frios). Amargor e sabor de lúpulos devem ser de baixos a médios e o aroma, ausente. O estilo permite a percepção sensorial de algum aroma de ésteres frutais em níveis baixos, que remetam a frutas passas como ameixas e uvas, provenientes da fermentação.

A terminologia "-ator" indica que a cerveja é uma doppelbock. Por exemplo: Paulaner Salvator, Ayinger Celebrator, Spaten Optimator, Tucher Bajuvator, Bell’s Consecrator, e assim por diante. Embora o sufixo seja indicativo do estilo, nem todas as cervejas comerciais o contem, como por exemplo: Weihenstephaner Korbinian, Andechser Doppelbock Dunkel, Weltenburger Kloster Asam-Bock, Capital Autumnal Fire, EKU 28, Eggenberg Urbock 23º, Moretti La Rossa e Samuel Adams Double Bock. 

Que tal provar um dos exemplares que chegam ao Brasil e tirar suas próprias conclusões? A Paulaner Salvator, por exemplo, é uma cerveja fácil de encontrar e de preço acessível. 

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Referências Bibliográficas

  • D. Richman, Bock, Brewers Publications, Inc., Boulder, 1994.
  • C. Swersey, P. Gatza, C. Skypeck, K. Kirkpatrick, C. Williams and D. Rabin, Brewers Association 2012 Beer Style Guidelines, 2022.
  • G. Strong and K. England, Beer Judge Certification Program 2021 Style Guidelines, 2021.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Leveduras, os "enviados de Deus"... os verdadeiros cervejeiros!

Quando você pensar em se autointitular cervejeiro, pense duas vezes. Será que é você quem faz a cerveja?

Antes de Louis Pasteur provar em 1871 que o processo de fermentação alcoólica era protagonizado por leveduras vivas, os produtores de cerveja acreditavam que o processo de fermentação, representado pela reação de decomposição na Figura 1, era algo que ocorria de forma espontânea e, além disso, “um presente de Deus” (o termo em inglês usado para definir o processo de fermentação antes da confirmação da atuação do microrganismo era godisgood... precisamos concordar que não deixa de ser!).  Prova disso é que a Lei de Pureza Alemã da Cerveja de 1516 previa a punição sob pena de confisco dos barris de cerveja para aqueles que fabricassem cerveja com ingredientes além de água, malte e lúpulo, sem mencionar a levedura: “(...) Além disso, queremos enfatizar que no futuro em todas as cidades, mercados e no país, os únicos ingredientes usados ​​para a fabricação da cerveja devem obrigatoriamente ser cevada, lúpulo e água. Todo aquele que intencionalmente desconsiderar ou transgredir esta portaria, será punido pelas autoridades do Tribunal, (...)”.

Figura 1. Reação de decomposição da glicose em etanol e gás carbônico [1]

As leveduras pertencem ao reino Fungi. São organismos eucariontes (célula com núcleo diferenciado), heterotróficos (não fazem fotossíntese), unicelulares e anaeróbicos facultativos. Isso significa que podem realizar respiração celular na presença ou na ausência de oxigênio. É na ausência de oxigênio que ocorre a reação de decomposição da glicose conhecida como fermentação alcoólica. A fermentação ocorre com o objetivo de a levedura produzir energia (ATP) para a sua célula. Os principais subprodutos desta decomposição são o gás carbônico e o etanol. Alguns outros compostos podem ser formados durante o processo de fermentação pela levedura através de reações bioquímicas. Esses compostos, mesmo que em pequenas quantidades, geram grande impacto, positivo ou negativo, no aroma e no sabor da cerveja: ésteres (compostos aromáticos frutados ou off flavors de solventes), álcoois superiores (picante, aquecimento, solvente), aldeídos (e-nonenal: papelão), diacetil (manteiga de cinema), compostos sulfurados (dióxido de enxofre/fósforo queimado; sulfeto de hidrogênio/ovo podre) e compostos fenólicos (cravo; medicinal). Alguns dos fatores que influenciam a ocorrência destes subprodutos na fase de fermentação da cerveja são: temperatura e tempo de fermentação, espécie da levedura, composição do mosto, contrapressão, quantidade de levedura, aeração e concentração do mosto. Os perfis esterificados de cervejas são desejáveis e algumas das formas de se consegui-los são: produzindo mosto de grande concentração, temperatura de fermentação mais elevada, sempre próximo da temperatura limite indicada para a cepa da levedura e forte influência da cepa do fermento, dos ésteres que podem produzir.

E quanto a reutilização de leveduras? A prática é complexa e fazer a reutilização em casa é difícil. O fundo plano do fermentador caseiro impossibilita a correta coleta da lama para posterior tratamento. Para os cervejeiros caseiros que desejam fazer a reutilização, recomenda-se que seja feita entre 5-6 vezes, não mais. É importante saber que a reutilização de leveduras pode ser um processo ardiloso, principalmente do ponto de vista de viabilidade (não confundir viabilidade com vitalidade). A viabilidade determina o percentual de células vivas em uma cultura. Uma das formas de se determinar a viabilidade de uma cultura é o teste de azul de metileno, assunto que será abordado em um artigo específico para este assunto em breve.

Caso a viabilidade de uma cultura de leveduras esteja baixa, é necessário que se considere fazer algo para melhorar o número de células viáveis. A técnica que torna isso possível chama-se propagação e é utilizada para multiplicar o número de células viáveis na população, importante para produzir aumento da biomassa de leveduras. Pode ser realizada também para adequar os inóculos para uma cerveja de acordo com a gravidade original (OG) e/ou restaurar a vitalidade das células. Utiliza-se uma fonte de nutrientes como, por exemplo, extrato de malte (DME) ou mosto com densidade 1.040, aproximadamente. As células permanecem sob agitação de forma a incorporar oxigênio e realizar respiração aeróbia, o que gera mais energia para multiplicação celular.

É natural que ao final do resfriamento pós fervura o mosto esteja coalhado de oxigênio; e isso é muito importante! Melhor ainda se estiver na condição de saturação, de 10ppm. Embora o oxigênio seja o inimigo número 1 da cerveja e a fermentação ocorra apenas de forma anaeróbica, é durante a fase aeróbica que a levedura produz maior quantidade de energia (36-38 moléculas de ATP). É durante esta fase de maior produção de energia que a colônia de leveduras crescerá e multiplicará nas primeiras 24h. As leveduras cervejeiras possuem limitada capacidade de respiração e estão sujeitas a repressão catabólica, portanto, caso a aeração seja insuficiente pode resultar em baixos índices de multiplicação celular, atenuação incompleta e aumento de produção e acúmulo de off flavors. O oxigênio é necessário para a fermentação cervejeira por permitir a síntese de esteróis e ácidos graxos instaurados. Esses lipídeos são essenciais componentes da membrana citoplasmática. Entretanto Saccharomyces cerevisiae é capaz de crescer sob condições anaeróbicas estritas somente quando há uma fonte exógena de esteróis e ácidos graxos instaurados. Sob condições aeróbicas, estes compostos podem ser sintetizados a partir de carboidratos. A aeração excessiva, no entanto, representa um stress potencialmente letal uma vez que radicais reativos de oxigênio (como os superóxidos e hidroxilas) representam uma ameaça potencial ao bom desenvolvimento das futuras gerações de leveduras. A fase anaeróbica inicia após o consumo total do O2 e a fermentação termina assim que os nutrientes fermentáveis terminam no líquido.  

A espécie de levedura mais comum usada na produção de cerveja é a Saccharomyces cerevisiae. Esta espécie é atrelada a produção de cervejas ale e à alta fermentação (fermentação que ocorre no topo da dorna de fermentação). A faixa de temperatura de atividade desta levedura é 16-26°C. Esta espécie confere aromas frutados à cerveja.

A fermentação de cervejas lager, ou baixa fermentação (fermentação que ocorre no fundo da dorna de fermentação), é processada pela espécie chamada Saccharomyces pastorianus. Esta espécie trabalha em uma faixa de temperatura de 9-14°C e confere aromas florais.

Mas o pitch de leveduras pode ser feito em qualquer quantidade? Que tipos de problemas isso acarretaria? Como já vimos, um pitch em baixas viabilidades pode acarretar problemas de início da fermentação, que pode até não ocorrer. E em quantidades excessivas? Este problema é conhecido como overpitching e acarreta alta velocidade no processo de fermentação, ocorrendo pouca liberação de gás carbônico, envelhecimento da cultura e aumento no risco de autólise (células mortas).

Um dos grandes riscos de defasagem no pitching é a ocorrência de diacetil como subproduto e off flavor. O diacetil é muito conhecido por conferir aroma de manteiga de cinema, mel e creme de leite. Isso ocorre no processo de fermentação ou por contaminação microbiológica, como por exemplo, contaminação por pediococcus.

Posto tudo isto, respondendo à nossa pergunta inicial: o cervejeiro de verdade é a levedura. Você é só um assistente que prepara todo o ambiente e dá as condições ideais que ela necessita para fazer o trabalho do “enviado de Deus”!

E não se esqueça: O PUNK NÃO MORREU!

Referências Bibliográficas

[1] MAHAN, Bruce M.; MYERS, Rollie J. (2002). Química: um curso universitário. Edgard Blücher. São Paulo, SP.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Humulus lupulus: sem ele todas as cervejas seriam Malzbier (literalmente)

Água, malte, lúpulo e levedura. Segundo a Lei de Pureza Alemã da Cerveja, esses são os ingredientes mágicos para se fazer uma boa cerveja! Já falamos sobre a água e o malte e chegou a hora de falar do lúpulo!

Figura 1. Flor da planta fêmea de lúpulo plantada na sede da Sinnatrah em São Paulo, Capital

O lúpulo é uma planta trepadeira perene que pode viver por até 30 anos e que foi utilizada como ingrediente de amargor na cerveja com registros que datam do ano 1400, tanto na Alemanha como na Holanda.

As escamas”, que podem ser observadas na flor em destaque na Figura 1 “estão repletas com glândulas esféricas resinosas, que são facilmente removidas por fricção, e têm um odor forte e agradável e gosto amargo; estas esferas parecem consistir de um ácido, óleo etéreo, uma resina aromática, cera, (...) e um princípio amargo chamado lupulina. Sob pressão, as cabeças de lúpulo produzem um óleo verde, leve e acre, chamado óleo de lúpulo. [1]

A química do lúpulo é amplamente conhecida e registrada na literatura técnica, e é composta pelos seguintes componentes [2]:

  • Resinas de amargor:

o   Alfa-ácidos;

§  Humulona: sabor/aroma elegante. Alto em lúpulos nobres. Degradação da substância deixa a cerveja picante

§  Cohumulona: responsável pelo harshness. Alto em lúpulos americanos, menor em lúpulos nobres

§  Adhumulona

o   Beta-ácidos;

§  Lupulona

§  Colupulona

§  Adlupulona

  •  Óleos essenciais;

o   Hidrocarbonetos

o   Terpenoides

o   Terpenos

§  Mirceno: pungente, ofensivo. Lúpulos nobres tem baixo teor de mirceno. Degrada rápido

§  Farnesene: bem alto em lúpulos nobres. Baixo no geral

§  Cariofileno: sabor picante, baixo nos lúpulos nobres

  • Polifenóis: sabor adstringente, complexam-se com proteínas ajudando na estabilidade coloidal, produzem estabilidade da espuma;

o   Xantohumol: possui propriedades anticancerígenas e estudos em andamento para o combate ao HIV-1, ao mal de Alzheimer e ao mal de Parkinson

  • Óleo e ácidos graxos;
  • Cera e esteroides;
  • Proteínas;
  • Celulose;
  • Água;
  • Clorofila;
  • Pectina;
  • Sais (cinzas).

É bem sabido que o lúpulo influencia na composição do aroma e do sabor das cervejas, equilibrando o dulçor do malte com seu amargor (quanto maior for a razão entre alfa/beta-ácidos no lúpulo, mais agressivo será o amargor. Os lúpulos nobres possuem razão alfa/beta menor que os demais); mas poucos sabem a respeito de outras funções do ingrediente: o lúpulo possui função tensoativa e auxilia na estabilidade coloidal da espuma, atua como agente antimicrobiano (as resinas alfa e beta-ácidos são bacteriostáticas), a presença de polifenóis, antioxidantes naturais, protege a cerveja de envelhecimento por oxidação e é responsável pela proteção da formação de complexos proteína/tanino, composto de grandes dimensões que turvam e tiram o brilho da cerveja.

Os compostos iso-alfa-ácidos são as substâncias de interesse cervejeiro como agentes de amargor, porém, não são encontrados na forma livre na flor do lúpulo. A principal forma de obtenção é a isomerização dos alfa-ácidos durante a fervura do mosto. Os principais alfa-ácidos e seus iso-alfa-ácidos correspondentes estão descritos na Figura 2.

Alguns dos principais fenômenos físico-químicos que influenciam na isomerização dos alfa-ácidos dos lúpulos são:

  • Temperatura: a reação de isomerização dos alfa-ácidos do lúpulo acontece a partir dos 80ºC, e é acelerada conforme a temperatura aumenta. Por isso manter um fervura intensa, próxima dos 100ºC, acelera o processo de isomerização;
  • Tempo de Fervura: quanto maior o tempo de fervura, mais compostos serão isomerizados, tendo como limite 60 minutos. Os 10 minutos iniciais da fervura geralmente são usados para a coagulação das proteínas, por este motivo é melhor adicionar o lúpulo de amargor após este tempo;
  • pH do mosto: a faixa de pH entre 5,1 e 5,3 confere amargor de melhor qualidade, com menor adstringência;
  • Forma do Lúpulo: pode ser utilizado em extrato, pellets ou flor.


Figura 2. Estruturas químicas dos metabólitos secundários de lúpulo mais abundantes e os iso-α-ácidos

Os alfa-ácidos do lúpulo são praticamente insolúveis em água, mas os iso-alfa-ácidos não. Quanto maior o grau de solubilidade de tais compostos, maior será a estabilidade do amargor ao longo do shelf life da cerveja.


Figura 3. Reação de isomerização da isohumulona

Embora as diversas qualidades de lúpulos sejam polivalentes no sentido de conferir amargor, aroma e sabor, alguns são mais indicados que outros para cada tipo de função. Para entender as diferenças básicas entre eles é necessário lembrar-se dos componentes dos lúpulos supracitados [2].

Lúpulos usados para conferir amargor geralmente possuem maior concentração de alfa-ácidos e menor quantidade de óleos essenciais. São adicionados no início da fervura e é indicado que, ainda que a fervura ultrapasse este tempo, sejam fervidos por 60 minutos, tempo máximo de isomerização dos alfa-ácidos. Tempo de fervura maior que 60 minutos para isomerizar estes compostos resulta em nada mais que gasto desnecessário de energia, dado que a conversão de isômeros a partir de 60 minutos é muito baixa. O limite máximo, ou ponto de saturação, de amargor que uma cerveja pode obter é 120 IBU (International Bitterness Unit, o IBU, chamado de Unidade de Amargor, ou UA, em português, é a escala internacional de amargor de uma cerveja). Após este ponto não há mais isomerização/solubilização de iso-alfa ácidos. Um exemplo de lúpulo muito utilizado para conferir amargor é o Magnum, um lúpulo mais barato e menos nobre que os utilizados para conferir aroma e sabor.

Os lúpulos usados com a finalidade de conferir aroma e sabor, no entanto, são ricos em óleos essenciais e geralmente possuem menor teor de alfa ácidos. Os óleos essenciais são substâncias extremamente voláteis e é por este motivo que lúpulos ricos nesta substância são adicionados à fervura já muito próximo do final, sendo recomendado que sejam adicionados a partir de 15 minutos antes de se desligar o fogo. As variáveis para escolha dos lúpulos utilizados para conferir aroma e sabor variam de acordo com a região, com o estilo planejado, com o grist de grãos escolhido, com a preferência do público consumidor, mas é fato que existem “lúpulos da moda”. Alguns exemplos de lúpulos que estão em alta (pelo menos quando escrevo este texto) são o Citra, o Mosaic e o Nelson Sauvin.

As técnicas conhecidas e difundidas de utilização do lúpulo na fervura são:

  • First Wort Hopping: técnica muito apreciada pela Cervejaria Adorea, o FWH é uma técnica de adição dos lúpulos antes da fervura, na transferência do mosto clarificado para a tina de fervura. É uma técnica que, por formar ligações glicosídicas entre os óleos essenciais e os açúcares presentes no mosto, fazem com que estes não sejam volatilizados durante a fervura, reforçando o sabor e o aroma do lúpulo ao final da fervura;
  • Full Boil: é a técnica de adição do lúpulo de amargor a 60 minutos, isomerizando a maior quantidade possível de alfa-ácidos presentes no lúpulo;
  • Late hopping: é a técnica de adição do lúpulo ao final da fervura, a partir de 15 minutos, para conferir maior aroma e sabor;
  • Whirpool/Stand Hopping (<85°C): maior extração de aroma e sabor e menor utilização das resinas ácidas (cerca de 10%);
  • Dry-hopping (entre 10-20°C por 48 horas): extração máxima de aroma. Para maior extração de aroma, o dry-hopping deve ser renovado a cada 48h, extraindo-se o lúpulo adicionado e colocando lúpulo novo.

As principais formas de comercialização dos lúpulos são:

  • Flor: lúpulo in natura, muito utilizado em fábricas de cerveja que fiquem próximas às plantações. Por não possuir nenhum tipo de tratamento, são mais suscetíveis à degradação, principalmente por oxidação. Entre setembro e outubro na Alemanha são fabricadas as fresh hop ales, cervejas que são fabricadas horas após a colheita das flores de lúpulo;
  • Pellets: atualmente é a forma mais utilizada no mercado cervejeiro dado a facilidade e a segurança no armazenamento. O lúpulo é moído e o pó é prensado, formando pellets, no processo as glândulas de lupulinas são rompidas gerando duas consequências: uma utilização superior de 10% a 15% nos pellets em relação à flor e uma oxidação mais rápida. Os pellets podem se dividir em 90, 45 e 30 e 30 Cryo-Hops.

o   90: contém 90% dos componentes não resinosos encontrados nos lúpulos em flor. Este é o tipo mais comum e possui a composição dos óleos e alfa-ácidos semelhantes aos das flores;

o   45: é enriquecido com lupulina e moído a -30ºC, reduzindo a aderência da resina e separando a lupulina da matéria fibrosa vegetal indesejada. São produzidos mais frequentemente a partir de lúpulos de aroma e com baixo alfa-ácido. A vantagem é que utiliza-se uma menor quantidade em relação ao pellet 90 para atingir o mesmo grau de sabor e aroma;

o   30: segue a mesma lógica dos demais, tendo ainda menor concentração de substâncias indesejadas na composição;

o   30 Cryo-Hops: segue a mesma lógica que os demais, apenas possuindo lupulina e óleos essenciais altamente concentrados.

  • Extrato de lúpulo: é o lúpulo na forma líquida. É obtido a partir da utilização de um solvente, geralmente CO2 líquido. Possui vantagens como redução do custo de transporte e armazenamento e maior uniformidade e estabilidade das suas características.
  • Óleos essenciais: utilizados para controlar a formação de espuma na panela de fervura e aumentar a quantidade de óleos essenciais (aroma e sabor) no mosto.

Após beneficiamento e secagem, a umidade do lúpulo deve cair para 10%.

A cerveja é geralmente engarrafada em vasilhames escuros, de cor âmbar, principalmente para protege-la da ação da luz. O iso-alfa-ácido isohumulona presente na cerveja, quando em contato com radiação ultra-violeta ou luz visível, está sujeito a uma reação chamada lightstruck. Esta reação gera uma substância sulfurada, considerada um off-flavor, chamada 3-Metil-2-buteno-1-tiol (3-MBT, Figura 4) que possui um limiar de percepção sensorial muito baixo, sendo perceptível mesmo em concentrações muito baixas (tecnicamente o sensorial treshold deste off-flavor é de 4ppt). A principal forma de se evitar este tipo de reação, conforme já adiantado, é acondicionar o líquido em recipientes protegidos da luz. Em casos aonde os vasilhames sejam transparentes (verdes ou incolores), a forma de se evitar o lightstruck é a utilização do tetrahop, uma isohumulona hidrogenada estável a luz. Um efeito colateral positivo do tetrahop é conferir maior estabilidade a espuma.


Figura 4. Representação gráfica da molécula de 3-MBT

Figura 5. Reação de irradiação da isohumulona e a formação de 3-MBT

Esperamos que este artigo sirva como guia para a utilização de lúpulos em suas receitas. A química dos lúpulos está em constante evolução e a cada ano se sabe mais a respeito do ingrediente. Muitos testes vem sendo feitos com relação aos terpenos para criar aromas cada vez mais complexos e agradáveis. Além disso, a pesquisa do lúpulo está dando passos promissores e importantes no combate ao câncer, ao HIV-1 e a síndromes cerebrais e motoras. Estamos de olho e a cada novo avanço, falaremos a respeito!

Enquanto isso, boa brassagem a todos!

E não se esqueçam: O PUNK NÃO MORREU!

Referências Bibliográficas

[1] Simmonds, P. L. (1877). Hops: their cultivation, commerce, and uses in various countries. A manual of reference for the grower, dealer and brewer. E. & F. N. Spon. New York: 446, Broome Street.

[2] Verzele, M. (1986). Centenary Review: 100 years of hop chemistry and its relevance to brewing. J. Inst. Brew. January-February, Vol. 92, pp. 32-48

[3] Schönberger, C., Kostelecky, T. (2011). 125th Anniversary Review: The Role of Hops in Brewing. J. Inst. Brew. 117(3), 259-267.

[4] Killeen, D. P., Watkins, O. C., Sansom, C. E., Andersen, D. H., Gordona, K. C., Perry, N. B. (2017). Fast Sampling, Analyses and Chemometrics for Plant Breeding: Bitter Acids, Xanthohumol and Terpenes in Lupulin Glands of Hops (Humulus lupulus). Phytochem. Anal. 28, 50–57. DOI 10.1002/pca.2642